domingo, 30 de dezembro de 2007

Avó

O mundo perdeu mais um sorriso avó, mas o céu ganhou mais uma estrela.
Sinto o tempo mais frio, os dias mais escuros e as lagrimas prontas a escorrer pelo meu rosto.
Preciso do teu beijo avó, do teu olhar doce, da tua voz serena que me contava historias à tarde depois de dormires a sesta.
Preciso de ti aqui avó, preciso de ir até ao quintal de plantar de novo o milho que cresceu a ouvir todas as nossas conversas e brincadeiras.
Quero arranjar a comida para as gaivotas, avó, quero que com toda a tua paciência me ajudes a prepara-la, quero ir lá a cima avó, sentar me ao teu lado e ouvir o que fazias quando eras pequena, a historia do lobo, da tua irmã que nunca conheci, das ovelhas, das casas de xisto e tetos de colmo, do pão escuro e do cheiro a fumo, quero que me contes com orgulho a historia dos pasteis de bacalhau que fizeste, que eram tantos para tanta gente e que sumiram.
Quero que me olhes com ar serio e digas “olha que o teu avô ainda nasceu no tempo dos reis!”
Avó, não podias partir assim, não antes de te levar a Covas do Rio, avó, não podias deixar-me antes de eu casar, antes de conheceres o meu namorado, não avó, não podias ir avó.
Mas eu sei que querias, eu sei, e Ele vai tomar conta de ti.
Dá um beijo ao avô diz lhe que tenho saudades dele mesmo de quando ele gritava comigo.
Adoro-te avó.
Tenho saudades tuas.

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ

Tens noventa anos.És velha, dolorida.Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler.Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.Viste nascer o Sol todos os dias.De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal!Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los.Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte.Trave da tua casa, lume da tua lareira sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião.Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar.Com isto viveste e vais vivendo.És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma.Vives.Para ti, a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio.Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses.E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre.O teu riso é como um foguete de cores.Como tu, não vi rir ninguém.Estou diante de ti e não entendo.Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo.Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo.Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida.Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos- e continuo a não entender.Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente.Porque foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesses compreender.Já não vale a pena.O mundo continuará sem ti- e sem mim.Não teremos dito um ao outro o que mais importava.Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido.Fico com esta culpa de que me não acusas- e isso ainda é pior.Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!"É isto que eu não entendo- mas a culpa não é tua.

José Saramago

Chega

Chega.
Por hoje sinto que chega.
Tudo o que me tucou, aqui ficou por entre as linhas do meu blog.
Talvez amanha quem sabe, uma coisa ou outra não me venha à memória?

Mas antes há algo que por mais que tente não deixo de recordar e aqui ficam duas cartas
uma minha
outra de um grande escritor.

Mar Portugues - Fernando Pessoa

Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Pessoas Sensiveis - Sophia de Mello Breyner Andresen

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não: "Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

25 de Abril - Sophia de Mello Breyner Andresen

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Viver sempre também cansa! - José Gomes Ferreira

Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

Já gastámos as palavras. - Eugenio de Andrade

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
E o que nos ficou não chega
Para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
Gastámos as mãos à força de as apertarmos,
Gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,
Era como se todas as coisas fossem minhas:
Quanto mais te dava mais tinha para te dar.


Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus