quinta-feira, 27 de março de 2008

Eros e Psique - Fernando Pessoa

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Vaidade - Florbela Espanca

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!


Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!


E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

Fanatismo - Florbela Espanca

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
"Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

domingo, 6 de janeiro de 2008

O mostrengo - Fernando Pessoa

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Feiticeira - Francisco Viana

De que noite demorada
Ou de que breve manhã
Vieste tu, feiticeira
De nuvens deslumbrada

De que sonho feito mar
Ou de que mar não sonhado
Vieste tu, feiticeira
Aninhar-te ao meu lado

De que fogo renascido
Ou de que lume apagado
Vieste tu, feiticeira
Segredar-me ao ouvido

De que fontes de que águas
De que chão de que horizonte
De que neves de que fráguas
De que sedes de que montes

De que norte de que lida
De que deserto de morte
Vieste tu feiticeira
Inundar-me de vida.

Autopsicografia - Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Avó

O mundo perdeu mais um sorriso avó, mas o céu ganhou mais uma estrela.
Sinto o tempo mais frio, os dias mais escuros e as lagrimas prontas a escorrer pelo meu rosto.
Preciso do teu beijo avó, do teu olhar doce, da tua voz serena que me contava historias à tarde depois de dormires a sesta.
Preciso de ti aqui avó, preciso de ir até ao quintal de plantar de novo o milho que cresceu a ouvir todas as nossas conversas e brincadeiras.
Quero arranjar a comida para as gaivotas, avó, quero que com toda a tua paciência me ajudes a prepara-la, quero ir lá a cima avó, sentar me ao teu lado e ouvir o que fazias quando eras pequena, a historia do lobo, da tua irmã que nunca conheci, das ovelhas, das casas de xisto e tetos de colmo, do pão escuro e do cheiro a fumo, quero que me contes com orgulho a historia dos pasteis de bacalhau que fizeste, que eram tantos para tanta gente e que sumiram.
Quero que me olhes com ar serio e digas “olha que o teu avô ainda nasceu no tempo dos reis!”
Avó, não podias partir assim, não antes de te levar a Covas do Rio, avó, não podias deixar-me antes de eu casar, antes de conheceres o meu namorado, não avó, não podias ir avó.
Mas eu sei que querias, eu sei, e Ele vai tomar conta de ti.
Dá um beijo ao avô diz lhe que tenho saudades dele mesmo de quando ele gritava comigo.
Adoro-te avó.
Tenho saudades tuas.